sábado, 14 de agosto de 2010

As muitas faces de Pina

(Entrevista de Norbert Servos, de Berlim, com a coreógrafa)

BRAVO!: Você disse em certa ocasião que a vida é como uma viagem. Observamos muitas coisas nas viagens: músicas, danças, culturas diversas. Tudo isso é processado nas peças?

Pina Bausch: Não sei exatamente como ocorre nas peças, mas preciso processar tudo isso. É claro que essas coisas estão em mim, em algum lugar dentro de mim.

B!: Como é a experiência de lidar com pessoas de outras culturas?
 PB: Acho maravilhoso, do contrário não faria isso, até porque é bastante cansativo e trabalhoso. Mas é algo imensamente importante.


B!: É correto dizer que você é uma pessoa com verdadeira paixão pela observação de tipos humanos?

PB: Sem dúvida. Só não sei se isso envolve apenas a visão. Gosto de sentir, de ter sensações. É claro que também fico olhando, mas isso tem a ver também com a maneira pela qual as coisas batem na retina, com o que você enxerga. Afinal de contas, não sou uma pessoa que simplesmente fica olhando ou fazendo apontamentos. Tudo o que eu vi não tem a menor utilidade para mim.

B!: Quem olha para você vê uma pessoa que assimila tudo com muita atenção, guardando tudo em si, para depois expressar tudo de forma diferente.

PB: Concordo com essa idéia da assimilação. Vivencio muitas coisas, mas não sei onde elas ficam armazenadas. Não sei nada, aliás. É impressionante como sabemos tão pouco.

B!: Se você fizer agora uma retrospectiva de 25 anos, será que às vezes aparece essa sensação de que o pique poderia baixar num determinado momento?

PB: Não tenho tempo para me ocupar com isso. Meu único medo é ser devorada por outras coisas e não ter tempo para trabalhar nas peças. Não sinto nenhuma falta de vontade. O meu problema é o inverso. Ficaria muito contente se ficasse um pouco mais aliviada das tarefas que envolvem organização para poder me concentrar mais em atividades criativas.

B!: De onde você tira motivação para fazer tanta coisa?

PB: Os bailarinos não vieram a Wuppertal para ficar parados em casa. Querem trabalhar, e muito. A vida útil de um bailarino é limitada, de modo que eles não têm tempo para se acomodar. Eles ficam muito tristes quando não têm o que fazer. Querem trabalhar e, na medida do possível, participar da peça seguinte. E isso também é uma coisa maravilhosa. Não posso dar-me ao luxo de ficar cansada (risos). Há tantas expectativas, e isso também é uma coisa bonita. Não posso simplesmente cair fora e tirar férias. De repente, aparece alguém na minha frente, radiante de felicidade, e diz: "Quero trabalhar". Isso transmite energia: você dá e recebe. É como nas viagens: o que se aprende e vive é muito forte. Sentimos tanta coisa, ficamos repletos dessas coisas - e, por algum lugar, tudo isso precisa sair da gente.

B!: Você acha que muita coisa mudou em seu processo de criação desde sua vinda para Wuppertal?

PB: A gente nem se dá conta disso. É um processo bem lento. Na época (1974), eu fiz, para citar um exemplo, Fritz. Esse projeto já foi uma colagem e não se baseava em nenhum original sobre o qual eu precisaria trabalhar. Em seguida fiz Ifigênia em Tauris e uma peça que se chamava Ich bring dich um die Ecke (Eu Te Mato), depois Orfeu. Como você vê, eu me movimentava entre extremos distantes. Esse modo de trabalhar não surgiu tão tardiamente. Existiu desde o princípio.

B!: Você se refere a "extremos" porque, em um desses casos, havia uma peça musical que servia de base?

PB: Não havia apenas uma peça musical que servia de base, mas também uma obra preexistente. Assim, já havia a necessidade de estar em certa harmonia com a música, com os papéis. Mais tarde as coisas evoluíram, mais no sentido de que todos os elementos se tornaram importantes.

B!: Além disso, houve durante algum tempo uma forte carga emocional em suas peças, que provocou muita gente. Hoje, suas obras se caracterizam mais por uma alegria serena...

PB: A carga emocional é sempre muito importante. Fico entediada quando não consigo sentir nada. Naturalmente, as peças apresentam hoje uma certa alegria serena, que não pode ser imaginada sem o pólo contrário. Esse consenso tácito com o público nos faz sorrir diante de nós mesmos, ou sorrir, com os outros, de nós mesmos, da condição humana... Mas esse traço existiu também em Renate Wandert (Renata Migra) e em Keuschheitslegende (Lenda da Virgindade). Só que as coisas se passam cada vez mais de forma distinta. Uma alegria serena, por si só, não significa nada. Em cada peça temos sempre também o oposto, como na própria vida.

B!: Seu grupo mostra uma energia renovada, diferente. É por isso que há mais danças nas peças?

PB: Os movimentos surgem como eu antes encontrava as coisas. Isso sempre me interessou muito. Não a própria composição, mas a descoberta do movimento.

B!: Há mais solos nas coreografias. As peças mais antigas davam ênfase às danças coletivas.

PB: Isso é conseqüência dessa busca paralela. Por um lado, temos o movimento, e em formas muito individuais. Quer dizer que eu trabalho com cada indivíduo até mesmo em termos de movimento. O que resulta do fato de que eu tenho muitos bailarinos, bailarinos maravilhosos. E isso também tem a ver com o fato de que os bailarinos se esforçam incrivelmente - têm consciência da responsabilidade que assumem nos seus papéis.

B!: Você já disse que houve também algumas transformações na busca e descoberta das danças.

PB: A gente sempre procura algo novo. Já fizemos tanta coisa, e não me interesso pelo que já fiz. Mas então todos perguntam: "Por que você não faz mais um projeto como A Sagração da Primavera?". Respondo: "Temos Sagração... e também Ifigênia em Tauris. Continuamos apresentando essas peças. Quando chegar a hora, certamente farei". Este é o lado bonito: a gente começa a caminhar sempre do zero, sempre precisa abrir novas portas.

B!: Você ainda tem medo de começar da estaca zero, como ocorria no início de cada peça, no passado?

PB: Não sei como isso se chama, se é medo ou não. Nesse ponto as coisas nunca mudaram. Acontece uma coisa muito especial quando a gente faz uma peça. Inicialmente, eu começo a procurar. O primeiro problema consiste em que a gente precisa de material, muito material. Isso ainda não resulta em uma peça. Nesse material, que a gente desenvolve, eu espero encontrar algumas miudezas, com as quais começo a compor uma coisa, com todo o cuidado. Tudo se passa como se eu fosse um pintor que tem apenas um pedaço de papel e precisa pintar sobre ele: é preciso proceder de forma muito cautelosa. Quando a gente erra num detalhe, não há mais como corrigi-lo. De repente, a gente se perde. Daí a grande preocupação e concentração para fazer a coisa certa. Não há nenhuma certeza nesse momento. Começo com algo e nem sei a direção que o trabalho vai tomar. A única coisa que tenho são os meus bailarinos. É uma coisa complicada, não se trata apenas do medo. Há também a esperança de encontrar algo muito bonito.

B!: Você tem a sensação de que as peças mudam quando os papéis são distribuídos a outros bailarinos? Ou será que elas conservam o mesmo perfil?

PB: Elas deveriam preservar o mesmo perfil. Essa é a dimensão bonita em uma apresentação ao vivo: cada noite é diferente. É necessário muito trabalho para manter uma peça de tal forma que ela pareça renascer no palco no instante da sua apresentação. Não se pode simplesmente levar a rotina na mala e dizer: "Bem, pessoal, vamos fazer essa peça". Afinal de contas, a peça deve ter o frescor da novidade em cada apresentação.

B!: Você tem aspirações para o futuro da companhia e de sua obra?

PB: Gostaria que pudéssemos criar uma situação na qual fosse possível trabalhar muito. Gostaria que todos os participantes desse trabalho fizessem tudo com prazer e grande senso de responsabilidade. Não quero que as pessoas trabalhem e se torturem, sofrendo do começo ao fim. Quero alegria no trabalho, e que ela seja transmitida ao público. Quero - e nem sei bem como vou expressar isso - que alguma coisa se expanda, lance pontes. Quero fazer muitos amigos no mundo inteiro. E que tenhamos novamente vontade de aceitar o desafio da vida, e mãos à obra! Quero que preservemos a esperança. E que isso produza um efeito positivo.

Tradução: Peter Naumann

Foto: Cena do Espetáculo "Para as Crianças de Ontem,
Hoje e Amanhã", apresentado no Brasil em 2006

Crédito: Revista BRAVO!

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