segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Intensidades Pulsionais na Obra de Pina Bausch


“Eu não investigo como as pessoas se movem, mas o que as move”

Pina Bausch

É com esta frase que Pina Bausch define sua pesquisa em criação coreográfica no “Wuppertaler Bühnen”. A Dança-Teatro deriva da Dança Expressionista, estilo que buscava retratar estados emocionais primitivos do ser humano, inspirando-se no movimento expressionista presente nas artes plásticas e no cinema. Bausch mantém esse mesmo foco de expressão, mas inova na criação e composição de suas peças, utilizando a colagem de trechos do material captado durante os ensaios. O processo se inicia com perguntas ou propostas feitas aos bailarinos, que os convida a redescobrir suas próprias histórias através de pensamentos e lembranças, que resultam na criação de cenas utilizando o movimento, o gesto e a palavra. As cenas são expressão das suas individualidades, sentimentos genuínos, recordações e exposição da própria fragilidade. No palco os bailarinos representam a si próprios transitando entre realidade e representação. Servindo-se da diversidade, a coreógrafa constrói formas que expressam múltiplos sentidos. O corpo na dança-teatro é carregado de memória e de linguagem; o bailarino é convocado a se apresentar como ser humano.

O palco é um espaço de transição onde se tecem sentidos. A atuação dos bailarinos expõe a sexualidade infantil, constituída a partir da história da sua própria sexualidade; a fantasia permeia a relação entre a cena e o espectador, expandindo a comunicação para além da palavra como código. Há sempre algo a mais sendo dito além do que se vê ou ouve, que constrói um sentido no decorrer do tempo, tocando cada espectador de maneira distinta. O passado é trazido à cena numa reedição que pressupõe uma elaboração no nível da consciência por parte do bailarino, porém o que é comunicado ao espectador transcende essa elaboração, como se da cena escapassem conteúdos inconscientes capazes de evocar no espectador marcas mnêmicas de suas próprias experiências.

Embora criadas pelos bailarinos, as cenas sofrem diversas modificações. Depois de apresentadas, a coreógrafa seleciona o material que será utilizado em cena e molda-o a partir da sua interferência através de sugestões, feitas pela palavra e movimento. O resultado contém a essência da criação inicial, mas não é mais a expressão da história pessoal dos bailarinos, pois esta dá lugar à criação de Bausch que envolve sua captação das intensidades pulsionais das ações. Bausch usa da subjetividade de cada dançarino, mas seu talento consiste em captar o que há de universal em cada manifestação singular, daí sua capacidade de falar ao humano quebrando fronteiras culturais e se fazendo compreender.

As perguntas são estímulos mobilizadores para a manifestação das pulsões, que encontram no próprio corpo seu veículo de expressão, gerando estímulos para o psíquico a serem representados em cena. As pulsões transcendem a distinção entre consciente e inconsciente, mantendo a origem nos processos do corpo humano, não garantindo distinções qualitativas entre elas, mas sim a sua diversidade. Assim, se estabelece comunicação entre o elenco e o público, pois o afeto, entendido por Freud como pura intensidade, encontra uma passagem direta para seu escoamento, sem necessariamente, ligar-se às representações–palavra.

Na composição coreográfica, Bausch manipula os movimentos criados pelos bailarinos, seja juntando partes de respostas de dois bailarinos para criar uma nova ação, ou sugerindo movimentos de sua autoria para serem entremeados, de forma que o conteúdo original nunca permanece o mesmo. Os recursos utilizados remetem aos mecanismos de condensação e de deslocamento encontrados nas produções oníricas, através dos quais elementos díspares são agregados deformando o conteúdo original do sonho, ou aspectos significativos são substituídos por outros de menor importância mudando o foco do insuportável para algo suportável. A essência do sonho permanece latente, à espera de ser desvelado, da mesma forma que o conteúdo da cena original se expressa nas entrelinhas. A cada encenação a vê-se a mesma história ser contada de infinitas maneiras diferentes. Há algo relacionado com o infantil, mas que não pertence à infância e sim ao presente reminiscente, ao passado atual revivido pela repetição através da qual, gestos aperentemente óbvios, adquirirem múltiplos significados, incitando diferentes leituras dos movimentos.

Recordação e repetição são dois recursos fundamentais na obra de Pina Bausch. Para Freud, a recordação não pertence ao mundo das ideias, mas sim à fantasia conforme explica em Interpretação dos Sonhos. Lembrar é evocar as associações feitas a partir de uma representação, pois esta é resultante de traços mnêmicos organizados pela simultaneidade. A associação livre proposta pela psicanálise abre caminho para um inconsciente estruturado por contiguidade, de forma que as associações não são tão livres assim, pois percorrem o caminho das representações que foram previamente conectadas e que juntas adquirem um sentido. Uma das marcas da representação é a capacidade de presentificar o passado. A recordação coloca o fato no passado, enquanto a repetição atualiza estratos da vida psíquica que não podem ser lembrados. A ação é, assim, lembrar sem se dar conta ou uma repetição para não esquecer. A memória da infância não é mais a infância, mas o presente da análise, algo que se apresenta no atual como um nó a ser desatado.

Se uma cena infantil é lembrada, significa que está fora da rede de representações inconscientes, mas há sempre algum elemento encoberto que é comunicado à plateia pelas entrelinhas. Isso se deve ao fato de Bausch conceder ao movimento o estatuto de palavra, conferindo às imagens sensoriais a capacidade de gerar significados. Se a percepção nos oferece elementos que adquirem unidade a partir da sua ligação com as representações palavra, a estrutura cênica fragmentada desperta a percepção, evocando em cada espectador o seu repertório associativo próprio.

Elementos provenientes de estímulos sonoros, táteis, visuais, olfativos ou cinestésicos se inscrevem como traços mnêmicos e se ligam a outras representações, mas podem permanecer como um resto não traduzido. Piera Aulagnier utilizou o termo “pictograma” para nomear a inscrição anterior à existência da palavra, referindo-se à representação que a psique dá a si mesma como atividade representante, algo que se passa antes de ser imaginado. A essência do pictograma é a capacidade do corpo de ser afetado num vínculo indissociável mundo-corpo, o que a autora definiu como fonte somática da representação psíquica do mundo. Dito de outra forma, o sensorial é psíquico, pois a capacidade de representar tem como pré-condição o exercício da sensorialidade no seu contato com o mundo, o que permite ao corpo ser afetado pelas impressões provenientes deste. Isto posto, será a partir da linguagem que o visto, o escutado, o degustado e o tocado darão origem a uma mensagem afetiva na interlocução entre dois sujeitos, uma mensagem que toca onde não há palavra. O intérprete da dança-teatro é portador dessa capacidade de expressar pelo gesto aquilo que não pode ser dito em palavras, estabelecendo com o espectador uma comunicação “corpo a corpo”, que afeta sua subjetividade. No seu processo de criação, Bausch multiplica os sentidos de cada gesto, invertendo muitas vezes a suposta ordem natural das coisas, num jogo que explicita a idéia de que o ser humano não apresenta padrões fixos de conduta, pois é movido pelas pulsões que produzem diferentes encontros.

Ao resgatar o infantil, Pina Bausch mergulha no universo das pulsões parciais, das relações de objeto, do masculino, do feminino e da bissexualidade como descrita por Freud, que divaga sobre o quanto a atividade e a passividade estão imbricadas na constituição do sujeito. Em dança-teatro, homens e mulheres marcam suas diferenças pela aparência, enquanto, ao se relacionarem, expressam a ambiguidade existente na diferença entre os sexos, deixando claro que, se a atividade está relacionada ao masculino e a passividade ao feminino, masculinidade e feminilidade são características inerentes a ambos os sexos.

Ao criar seus espetáculos de dança-teatro, Pina Bausch parte de um estado de desconhecimento, semelhante ao caos pulsional, um estado de pura excitação, de energia não ligada a partir do qual constrói-se o movimento de integração. Fazendo um paralelo aos processos psíquicos, pode-se dizer que parte de mecanismos do processo primário em direção ao secundário, possibilitando a formação de sentidos. Sua narrativa fragmentada convoca o espectador a revisitar suas próprias memórias, evocando sentimentos e propiciando espaços para elaborações. A dança-teatro mergulha no universo das intensidades pulsionais, transpondo a experiência estética à esfera do simbólico.

Texto: Márcia R. Bozon de Campos
Instituto Sedes Sapientiae

Um comentário:

  1. oooi tudo bem tenho duas perguntas sobre pina bausch sera que voce poderia me responder ?
    são qual a relação de pina bausch com a cenografia.. e oque aconteceu com a sua 1º apresentação ?
    Gosto muito dela e gostaria de saber isso obrigada

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