sábado, 14 de agosto de 2010

Um teatro do movimento

Dança de Pina Bausch é nova forma de espetáculo
(Texto de Fabio Cypriano)

Ao som de uma colagem musical que inclui Beethoven, Mozart e árias italianas antigas, cantadas por Benjamino Gigli, uma mulher vive um caso de amor com um hipopótamo. Situações como essa, moldadas para estimular a reflexão sobre as impossibilidades nos relacionamentos humanos, compõem o repertório de Pina Bausch, a coreógrafa alemã que inventou uma nova forma de espetáculo e cuja obra já é um clássico do século 20.

Em Árias a criação de 1979 que relacionou o monumental paquiderme à condição humana, assim como em suas demais obras, Bausch explora histórias expressivas de um mundo cruel, cínico e violento, que contudo não deixa de incluir o humor e a esperança. "De certa forma, meu trabalho é uma longa e única peça", costuma dizer a coreógrafa, que subverteu os códigos convencionais da dança para desenvolver uma linguagem teatralizada, sustentada pela expressão gestual que, mesmo quando reduzida ao mínimo de movimentos, sempre consegue tocar o essencial.

Segundo Bausch, a perda do movimento e da dança, em seus espetáculos, é apenas aparente. "Tenho imenso respeito pela dança e é por essa razão que a utilizo moderadamente", ela disse à italiana Leonetta Bentivoglio, autora de um livro sobre a coreógrafa. "A dança está presente em minha obra, mas não é mostrada diretamente. Diria que os movimentos utilizados são tão simples que nos fazem pensar que não constituem uma dança. Mas, para mim, é o inverso. Acredito que há muita dança no trabalho de meus intérpretes, mesmo quando eles não se mexem."

Rejeitando mensagens, os espetáculos de Baush propõem questões abertas. Com sua visão subjetiva das relações humanas, ela estimula percepções diferentes de um mesmo tema - como se algo pudesse ser visto de diversas formas, dependendo das circunstâncias. Com isso, a mesma obra pode adquirir múltiplos significados a cada nova apresentação. Eterna investigadora do movimento, Bausch já desafiou seu elenco a atuar em palcos recobertos por terra, água, troncos de árvores, milhares de cravos ou perante um muro que desmorona repentinamente. Ela explica que essa impressão de desordem dá aos bailarinos consciência da realidade, mantendo-os em estado de atenção permanente. "Amo o real. A vida jamais se compara a um chão feito para a dança, liso e seguro... Amo a relação da natureza com a dança. O passo de um dançarino sobre a grama ou a terra fresca é completamente diferente, e sua maneira de ser e de se movimentar se transforma", diz.

No vocabulário singular de Bausch, que disseminou influências e gerou legiões de imitadores, transitam elementos mais próximos do teatro do que da coreografia. Entretanto, os integrantes de seu elenco treinam rotineiramente a técnica do balé clássico, nunca utilizada como molde, mas como um recurso integrado à polivalência expressiva. Durante seus processos criativos, ela também cerca seu elenco de perguntas, relativas tanto à vida cotidiana como ao imaginário de cada um. De tais exercícios, recolhe reações particulares que, em conjunto, refletem as contradições do comportamento humano. Pouco a pouco, ela constrói uma organização dramática, marcada por ações repetitivas e narrativas descontínuas.

A atração pela subjetividade, que a faz somar a seus espetáculos as características e contribuições individuais dos bailarinos, vem de Kurt Jooss (1901-1979)- o precursor da nova dança alemã surgida no pós-guerra -, com quem Bausch trabalhou como assistente na escola Folkwang, dirigida por ele na cidade de Essen. Nascida em 1940, em Solingen, Bausch se deleitava, na infância, com as pessoas e situações que observava no restaurante de seu pai. "É uma bagagem que jamais perdi", diz. Aos 14 anos, quando ingressou na escola fundada por Jooss, ela teve a oportunidade de estudar diversas modalidades de dança, da clássica à folclórica, além de disciplinas integradas, como música, teatro, canto, fotografia, artes plásticas.

Em 1959, quando se mudou para Nova York, onde viveu durante dois anos, Pina também se encantou com o caráter multifacetado da cidade. Durante esse intenso período, ela estudou na Juilliard School of Music, dançou nas companhias de Paul Sanasardo, Donya Feuer e Paul Taylor, e também fez parte dos elencos do New American Ballet e do Metropolitan Opera Ballet, na época dirigido pelo coreógrafo britânico Antony Tudor, que lhe salientou as nuances poéticas dos movimentos, mesmo sob o rigor acadêmico.

O prazer de conviver com as diversidades, ela o estendeu ao seu elenco, que reúne bailarinos vindos de diversas partes do mundo. Como os personagens de Fellini, com o qual ela trabalhou no fil-me E la Nave Và, sua companhia reúne tipos singulares, que conseguem espelhar incoerências individuais e coletivas. Embora muitas vezes se limitem a falar textos desconexos, chorar, cantar ou gritar, os intérpretes de Bausch são, acima de tudo, bailarinos.

Por causa da relação especial que mantém com o corpo, o bailarino, na opinião de Bausch, sabe ser natural. É por isso que ela não se interessa em trabalhar com atores, que sempre se projetam para o exterior. Bailarinos, afirma Bausch, conseguem ser eles mesmos e lidar melhor, em cena, com emoções mais autênticas. Para ela, isso garante a simplicidade - algo que ela persegue permanentemente em seus espetáculos.

Créditos: Revista BRAVO!



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